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irNo último mês, o tema aborto voltou à pauta depois que o presidente Lula retirou o Brasil da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Mulher, assinado por seu antecessor e que previa em seu texto que “não há direito internacional ao aborto nem qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”. Um dia antes, o Ministério da Saúde revogou uma norma que dificultava o acesso da mulher grávida ao aborto legal. Com o objetivo de esclarecer e fixar conceitos tão importantes para a sociedade que dizem respeito à vida, voltamos a tratar da questão do aborto, em uma entrevista com o médico Gilson Luís Roberto (foto), presidente da Associação Médico-Espírita do Brasil (AME-Brasil), vice-presidente do Hospital Espírita de Porto Alegre e professor do curso de pós-graduação em Saúde e Espiritualidade da Universidade de Caxias do Sul.
Ao lembrar que a vida deve ser considerada desde a fecundação, fato considerado pela ciência e pelos médicos e descrito em todos os livros de embriologia, Gilson explica que no zigoto, resultado da união do óvulo e o espermatozoide, já estão presentes todas as informações genéticas do novo indivíduo que se revela no seu processo de ontogênese. “Desde a formação ali no zigoto, embrião, feto, nascimento, infância e vida adulta, ele será o mesmo indivíduo, a se manifestar em várias fases da sua existência. Não há diferença alguma em termos biológicos dessa individualidade. É uma vida a se manifestar em várias fases. Então, se interrompemos esse processo no início ou no final, a ação é a mesma”, esclarece o médico, que tratou mais detalhadamente do assunto na entrevista transcrita abaixo.
“Alguns países permitem o aborto até a décima segunda semana de gestação, alegando que só a partir daí há a formação do sistema nervoso central e começa a haver dor. Isso não é verdade. Pesquisas mostram que a consciência existe antes disso e a sensibilidade à dor também. A médica portuguesa Jerónima Teixeira publicou, em 1999, com dois colaboradores, um artigo muito interessante no American Journal of Obstetrics and Gynecology mostrando que já na décima semana o feto tem dor.”
FE – É muito comum as pessoas alegarem que quem é contra o aborto normalmente o é por questões religiosas. Que resposta você dá a quem pensa assim?
Gilson – A questão do aborto está acima de qualquer questão religiosa. É uma questão de ética humana! Porque é uma violência que estamos provocando na destruição de uma vida, de um indivíduo que está se formando e que tem toda a possibilidade de viver a sua vida, e nós a estamos interrompendo. Depois entram outras questões espirituais, religiosas, médicas, psicológicas e emocionais que envolvem essa questão. Mas o princípio fundamental da discussão é a interrupção da vida humana. Sabemos que essa consciência que está dentro do útero sofre, foge quando se tenta fazer o aborto, se defende.
“Sabemos que a nossa personalidade adulta carrega os traumas da gestação da mãe. E há pesquisas médicas mostrando que o bebê carrega em sua vida tudo o que vive dentro do útero. As atitudes da mãe são sentidas e fazem a criança sentir o mesmo no útero. Então, a vida está ali, pulsante!”
FE – Para quem não acredita em Espíritos, o que você pode dizer?
Gilson – Vai chegar o dia em que será comprovada a existência do Espírito, e essa percepção vai mudar. Com a consciência de uma realidade espiritual, vamos ampliar a nossa visão de mundo e de homem. Vamos entender as leis que regem a nossas vidas. Sabemos que toda a vida encarnatória tem uma finalidade e que as coisas não acontecem por acaso, existe um governo oculto que preside os nossos destinos, um planejamento reencarnatório. As coisas não são soltas, elas têm uma finalidade. Mas, independentemente das justificativas espirituais, é uma violência impedir um processo do qual todos nós temos o direito, que é o de viver. Sem o direito à vida, os outros direitos não têm importância: alimentação, saúde, moradia, liberdade.
“Independentemente do estágio em que está em desenvolvimento, é um ser em formação. Existe uma consciência ali e por trás dela a realidade do Espírito, uma individualidade espiritual, manifestada na união da matéria com a alma, coma energia vital.”
FE – Você tocou num ponto importante. Os defensores do aborto normalmente falam muito no direito da mãe, mas como fica o direito do embrião?
Gilson – Existem várias estratégias criadas pelas instituições que defendem o aborto para tentar justificar o injustificável. Falam em direito da mulher, direito reprodutivo. Mas e os direitos do feto? Pesquisas médicas mostram que a criança cria até processo de defesa imunológica havendo alguma possibilidade de o corpo da mãe afetar esse embrião. Então, ele tem um processo de identidade própria, genética própria. Não é um apêndice da mãe! É um outro corpo, uma outra vida.
“Quando Kardec pergunta à espiritualidade qual é o primeiro de todos os direitos naturais, a resposta que recebe é a de ‘viver’. Então, é um direito outorgado por Deus e ninguém pode tirá-lo: nem a mãe, nem o Estado, nem o médico.”
FE – Sabemos que o aborto no Brasil é crime. Entretanto, em algumas situações, o procedimento é permitido, como, por exemplo, estupro, risco de vida para mulher ou anencefalia. Mesmo com permissão para o abortamento, o que você diria para uma mulher que passa por alguma dessas situações?
Gilson – Sabemos o quão difícil é o momento que enfrentam, mas lembro de uma afirmativa de Emmanuel no livro Leis morais, quando ele diz que acima das leis humanas existem as leis divinas. As humanas são temporárias, se modificam conforme o progresso moral de uma nação. À medida que vamos evoluindo as leis humanas, vamos evoluindo em direção à harmonia com as leis de Deus. O estupro é uma grande violência, e não tem como negar isso. É uma violência muito grave que deixa a mulher muito vulnerável, psicologicamente falando, e essas condições emocionais muitas vezes não permitem que ela leve a gestação adiante. Mas nós já encontramos também muitas mães que optaram em seguir com a gestação e tiveram uma relação com aquela criança, conseguiram desvinculá-la do ocorrido. Se a mãe conseguir superar essa dificuldade, recebendo apoio emocional, será muito melhor. Se fizer o aborto, vai passar por outro processo de violência. Porque todo aborto é uma violência contra a mulher, uma violência que vai deixar marcas psicológicas profundas nela. Na Europa, onde o aborto é liberado, as mulheres desenvolvem síndrome pós-aborto, usam álcool e drogas, têm mais depressão, se suicidam. Elas perdem a paz, entram num quadro de crise de ansiedade, de depressão. Por que acelerar um processo que pode acontecer em alguns meses? Por que não tentar levar isso mais adiante, fazer o parto e deixar essa criança sobreviver, doando para uma mãe que a queira? Há muitas mulheres na fila da adoção, e essa criança poderia fazer a alegria de outra mulher. Nós entendemos essa situação das mães que passam por violência, mas se essas mães entenderem que ali existe um Espírito, uma vida que não tem nada a ver com o agressor, é uma outra individualidade, e receber esse suporte psicológico, nós acreditamos que isso vai ser muito menos violento.
FE – Existe alguma limitação física que coloque em risco a vida de meninas mais novas quando engravidam?
Gilson – Não. É mais uma questão de maturidade do que gestacional. É claro que tem que olhar cada caso. A sociedade se escandaliza com crianças de 11, 12 anos grávidas. Infelizmente, isso faz parte da realidade brasileira. É muito comum nossos obstetras fazerem partos seguidos de crianças e adolescentes. O que está faltando é educação sexual. Muitos se sensibilizam pela situação vivida pelas mães – e realmente precisam se sensibilizar –, mas se esquecem de uma outra vida que está ali e que merece o mesmo carinho, a mesma atenção da sociedade. No caso de risco materno, acho mais complicado, porque proteger a mãe também é proteger a criança. Acho que este é o único caso no qual se justifica o aborto. A própria espiritualidade fala sobre isso, que é melhor proteger uma vida que já existe do que uma outra que está sendo constituída. Uma forma de também proteger a criança é tentar manter essa gestação o máximo possível.
FE – É muito comum a gente ouvir no Brasil por quem defende o aborto que, mesmo proibido por lei, não é raro as mulheres o praticarem e que quem tem dinheiro o faz em boas condições de saúde, diferentemente das mais pobres. Como você vê isso?
Gilson – O abortamento é muito maior entre as mulheres ricas, que muitas vezes não querem comprometimento, nem responsabilidade, por várias questões. As mais pobres têm muito mais filhos. O que precisamos é de educação e planejamento familiar!
FE – Nos países onde o aborto é permitido, ele diminuiu?
Gilson – Não é um consenso, mas em muitos países nos quais foi liberado até aumentou.
FE – No último mês, o novo governo decidiu pela desvinculação do Brasil com a Convenção de Genebra e também revogou uma portaria que determina a comunicação do aborto por estupro às autoridades policiais. Qual sua opinião sobre isso?
Gilson – A pauta da AME-Brasil é a defesa da vida. Isso sempre ocorreu, independentemente de governos. A portaria foi feita para tentar impedir que se use como justificativa para o aborto a violência sexual. Se a mulher falar que sofreu um estupro, ela pode fazer o aborto. Só que muitas vezes isso não ocorre e é usado como justificativa. A portaria anterior obrigava a mulher a comunicar o agressor. Quanto à Convenção de Genebra, me parece que existem várias outras questões sendo discutidas, não só aborto, mas relações homoafetivas. Não conheço todo o conteúdo desse documento, então é difícil avaliar. De todo modo, sabemos que a população brasileira em sua maioria é contra o aborto. Então, é assim que devemos seguir.
FE – Um dos temas que também vai muito em pauta com esse assunto é a descriminalização do aborto, que é um dos temas que pode ser enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal ainda neste ano. A questão, como nós sabemos, é alvo de uma ação apresentada pelo PSOL em março de 2017 e que aguarda até agora o julgamento no plenário do tribunal. O que a AME-Brasil espera do STF?
Gilson – Primeiro, que não assuma para si a atitude de descriminalizar o aborto, que não cabe ao Supremo, mas, sim, ao Congresso, a casa da lei. E que respeite a população brasileira, em sua maioria contrária ao aborto.
“As pessoas que defendem o aborto sempre procuram justificativas ou tentam criar alegações para responder a essa atitude de violência contra a vida.”
Ouça a entrevista na íntegra no podcast da Folha Espírita, nas principais plataformas.
TEIXEIRA, Jerónima M.; GLOVER, Vivette; FISK, Nicholas M. Acute cerebral redistribution in response to invasive procedures in the human fetus. American Journal of Obstetrics and Gynecology, v. 181, n. 4, p. 1.018-1.025, 1999. Doi: https://doi.org/10.1016/s0002-9378(99)70340-6.